por Héctor Ricardo Leis – As eleições democráticas não são condição suficiente para que se façam boas escolhas políticas. Diante das catastróficas experiências totalitárias e autoritárias do século 20, a opinião pública foi levada, com bons motivos, a idealizar a democracia. Historicamente, porém, esta idealização tem dificultado a percepção dos inimigos que se escondem sob seu manto. A primeira experiência democrática dos alemães (a República de Weimar, 1919-1933) é um exemplo: foi devorada desde seu interior pelos movimentos antidemocráticos de esquerda e de direita. O golpe de misericórdia foi-lhe dado por Hitler, que subiu ao poder em eleições livres.
No nosso país, a transição para a democracia, iniciada após o fim do regime militar, tem levado os brasileiros a idealizar o funcionamento do Parlamento, dos partidos políticos e dos processos eleitorais em geral. A necessidade de aprofundar a democratização o mais rápido possível nos levou, corretamente, a focar mais as virtudes que os defeitos do sistema. A Constituição de 1988 foi marcada por esse otimismo: gerou um marco legal que criava mais expectativas de direitos e regalias do que obrigações e mecanismos de controle – tanto para os cidadãos como para seus representantes.
Hoje há ainda ameaças à democracia brasileira. Mas elas não provêm de forças antidemocráticas, ao estilo do nazismo ou do comunismo, atuantes nas primeiras décadas do século 20. Embora existam alguns pequenos grupos que atuam de forma que não pode ser qualificada de democrática, a ameaça atual não parece encarnar num ator em particular. É mais um efeito deletério do sistema, um produto das regras com que o conjunto dos atores joga. O fator antidemocrático presente é a crescente degradação da classe política que constitui nosso Parlamento.
O Brasil vive uma grave crise de representação parlamentar, talvez a pior de sua História. Os legisladores criaram instituições que depositaram excessiva confiança no desempenho de seus parlamentares, assim como na capacidade dos cidadãos de escolherem os melhores candidatos na hora da eleição. Em outras palavras, criou um sistema com baixa accountability -termo que, até por ter sido criado numa sociedade com longa prática democrática liberal, ainda não tem tradução para o português, mas poderíamos tentar uma: capacidade de prestação de contas de um sistema. Qual é a base do princípio de accountability no caso do sistema político? É a prestação de contas ao eleitor e ao Estado pela tarefa realizada por representação. A cidadão delega poderes na hora da eleição sob a condição de que seus representantes sejam cuidadosamente observados e punidos em face de qualquer desvio de seu comportamento em relação ao bem comum.
O que produz um sistema político com baixa accountability como o nosso? Corrupção e malandragem. Mas também empurra perigosamente o País para o abismo, na medida em que se permite que a classe política podre possa sobreviver e se reproduzir sem problemas. E o pior efeito disso é a acomodação do cidadão a tal estado de coisas.
Por quê? Porque essas adaptações cristalizam a crise de representação democrática como fator permanente do sistema político. Não existe no mundo melhor convite ao populismo que isto! A falta de claros mecanismos de prestação de contas e a correspondente impunidade para o exercício ilegal da função pública acabam invertendo a relação entre representante e representado, fazendo que não seja o cidadão quem escolhe. Ao contrário, é o político que escolhe de onde tirar seu voto. O preço da crise de representação é o desinteresse do cidadão pela política e a transformação da política numa falsa estética: já que são tiradas do cidadão as ferramentas para fazer uma escolha racional, não lhe cabe senão eleger seu representante pela aparência e com a emoção. Nesse contexto opera a inversão da representação e o cidadão deixa de eleger o melhor para eleger aquele com quem se identifica. Por isso, nos países com severa crise de representação os cidadãos recebem o nome de seus líderes: castristas, chavistas, peronistas e, quem sabe, lulistas.
Nosso Parlamento nunca deixou de ter problemas, mas sempre teve uma maioria de setores esclarecidos que apontavam com coerência na direção de suas respectivas ideologias. Fossem liberais, conservadores ou socialistas, eles operavam com uma visão clara do bem comum. Mas hoje é maioria o chamado baixo clero, ou representantes sem nenhuma expressão dentro do Parlamento que chegaram lá mais para fazer carreira pessoal e, afora participar de algumas votações, não fazem trabalho legislativo propriamente dito por falta de preparo. As pesquisas mostram que o baixo clero foi aumentando significativamente de legislatura em legislatura, nos últimos 20 anos. A corrupção e os crimes de nossos representantes, também. E tudo isso para não falar de nossas lideranças políticas estabelecidas, hoje e no passado, em cargos do Executivo e que também têm sua cota de responsabilidade nessa situação.
Que fazer, então? O eleitor deve descobrir suas preferências, votar consciente, saber em quem está votando, mas sabendo também que não é obrigado ao voto válido – pode votar em branco. Talvez, nunca como hoje, o voto em branco para deputado federal seja o voto mais válido de todos. O cidadão deve saber também que os partidos que albergam nas suas listas candidatos processados ou que renunciaram recentemente para não serem cassados, de fato, tratam o cidadão como débil mental, razão por que não parece aconselhável votar neles.
Infelizmente, não restam muitas opções na próxima eleição, mas alguma haverá: é preciso procurar cuidadosamente. Ninguém, no entanto, escolhe as circunstâncias em que vive. Nós, brasileiros, somos hoje obrigados a nos sentirmos tristes diante de nossas escolhas políticas.
Talvez esse seja o primeiro passo para encontrar alguma luz no fim do túnel.
H. R. Leis es un politólogo argentino residente en Brasil, docente en la Universidad Federal de Santa Catarina en Florianópolis, y colaborador en varias actividades de CLAES. La presente nota de opinión fue publicada en el periódico O Estado de S. Paulo, el 15 de septiembre de 2006, y se reproduce en Peripecias con el permiso de su autor. Reproducido en el semanario Peripecias Nº 16 el 27 de septiembre 2006.